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[Diversidade e inclusão] · · 6 min de leitura

Em defesa de uma maior inclusão

Alguns dias atrás, iniciou-se a seguinte discussão no Twitter: “Homens trans deveriam ter acesso a projetos educacionais voltado APENAS para mulheres cis e trans?”. A resposta, como tudo na vida, é um tanto complexa.

Grupos focados em minorias específicas não são inerentemente ruins. Ao compará-los com grupos mais generalistas, grupos focados servem o propósito de prover apoio a minorias que que têm as suas vivências e demandas sufocadas pelo público padrão de grupos generalistas, seja de maneira intencional ou não.

O problema começa a partir do momento em que apenas alguns grupos de minorias (notoriamente grupos com mulheres que são cis, brancas e têm uma melhor situação financeira) tomam toda a atenção, implicitamente se tornando sinônimos de diversidade e inclusão completas.

Iniciativas que ativamente incluem mulheres trans ou pessoas trans com uma identidade feminina não só em promessa mas provendo todo tipo de acomodação necessária, desde formulários de inscrição inclusivos a diminuir ao máximo as chances de serem constrangidas, intimidadas ou segregadas já são raras. As que incluem homens trans ou pessoas trans com uma identidade masculina ou neutra, pessoas com deficiência e/ou mobilidade reduzida, de baixa renda, com filhos, refugiadas, minorias étnicas e/ou raciais ou que sofrem outros tipos de discriminação ou viés sistêmico não citados são extremamente escassas.

Mas o que podemos fazer sobre isso?

Incluir outros grupos de minorias em iniciativas bem estabelecidas como Django Girls ou Rails Girls mantendo a identidade do grupo pode parecer atrativo, afinal, são grupos com grande adesão, uma extensa cobertura nacional e mundial e dispõem de mais recursos e visibilidade do que qualquer outro. No entanto, voltando à pergunta que originou este texto, isso coloca qualquer pessoa que não se alinhe a uma identidade feminina de uma maneira significativa em uma situação extremamente difícil, e eu tenho uma anedota a respeito disso.

Um ano atrás, após o meu estágio de três meses com a comunidade da Wikimedia, eu era vista e celebrada como uma mulher na tecnologia. E honestamente, eu me conformava a este papel especialmente porque naquele momento, refletir sobre a minha identidade de gênero era um processo doloroso. Fiz diversas amizades e fui acolhida por diversos grupos sob a percepção de a minha identidade era de uma mulher cisgênera. Hoje, um tanto mais aberta sobre a minha identidade não-binária, sinto-me tão isolada em ambientes hiper femininos que me pergunto se qualquer acolhimento que eu recebo é sincero ou vem de uma percepção externa de que eu sou uma mulher cis, ou se minhas participações tem um menor valor por não eu ser a mulher modelo que gostariam que eu fosse. Sage Sharp descreve bem esse sentimento em seu texto “Binaries Are For Computers”:

“Há vários espaços de tecnologia que são projetados a ajudar a conectar pessoas de grupos subrrepresentados na tecnologia. Alguns grupos de tecnologia são para “mulheres” ou “meninas” (o que às vezes significa mulheres jovens, e às vezes significa mulheres adultas). Não é claro se pessoas não-binárias estão inclusas em tais grupos, o que me coloca na posição desconfortável de perguntar a todos os grupos nos quais tenho envolvimento se este ainda é um lugar para mim.”1

Sage ainda recomenda o texto On the Design of Women’s Spaces de Kat Marchán. Ele possui uma ótima conclusão sobre os rótulos que permeiam comunidades:

“Rótulos são tremendamente importantes particularmente para a comunidade queer. Nós somos sensíveis a eles. Nós os usamos para filtrar coisas que podem ser perigosas para nós. É sua responsabilidade, como organizadores da comunidade, depositar bastante esforço na estrutura de sua comunidade, nas palavras que você usa, nas regras que você impõe, e nos recursos que você provê. E além de ler textos como este, o que pode ajudar um pouco, não há substituição para simplesmente chamar pessoas que não são como você, que vivem nessas intersecções, e trazê-las para a liderança.” 2

Pessoas com uma identidade masculina ou neutra seriam colocadas em situações ainda mais constrangedoras por motivos intrinsecamente ligados à identidade destes grupos. Não é possível incluir essas pessoas sem fazer com que elas se sintam inadequadas por estarem em iniciativas que abraçam uma identidade que não as pertence. Forçá-las a se colocarem nessa posição é deslegitimar as suas identidades.

O que nos sobra então?

Criar iniciativas com menos critérios fixos para definir minorias e mais critérios gerais que efetivamente abordem as diferentes origens de discriminação e opressão. Acolher pessoas que sofrem discriminação e/ou viés sistêmico e enfrentam diversas barreiras em ambientes de aprendizado e profissionalização, e pessoas pertencentes a grupos subrrepresentados. Abrir espaço para lideranças de outras minorias ao invés de presumir as suas necessidades de uma forma condescendente. Abraçar as iniciativas lideradas por elas tanto quanto qualquer outra relacionada a mulheres na tecnologia. E ainda mais importante, mudar a noção de que uma ação que visa incluir somente mulheres é equivalente a uma ação que promove total inclusão.

Tenho muito orgulho de ter sido estagiária e hoje fazer parte da equipe do programa de inclusão Outreachy. No momento em que participei como candidata, os critérios de inclusão eram fixos. Em específico, o programa explicitamente convidava a se candidatarem mulheres cis e trans, homens trans, pessoas genderqueer, além de minorias étnicas nos Estados Unidos de qualquer gênero. Anos antes, quando o programa se chamava “Outreach Program for Women”, ele era completamente focado na inclusão de mulheres. Mas desde a rodada de dezembro de 2018 a março de 2019, quando me tornei parte da equipe, adotamos critérios gerais e nossa seleção é mais minuciosa, focando nossos esforços em acolher toda pessoa que sofre discriminação. E sinceramente, apesar de podermos melhorar a abrangência do Outreachy em diversos aspectos, acredito que esta é iteração do programa que melhor cumpre a função de inclusão social até o momento.

Em resumo, não há mal em ter grupos focados em minorias específicas. Na verdade, é bastante positivo que elas fomentem lugares e grupos que considerem seguros para si. Essa não é uma crítica a grupos como Django Girls, mas sim a um mundo em que só grupos como Django Girls parecem importar.


  1. Tradução de minha autoria. O trecho original em inglês diz: “There’s a lot of tech spaces that are designed to help connect people from groups who are underrepresented in tech. Some tech groups are for “women” or “girls” (which can sometimes mean young women, and sometimes means adult women). It’s unclear whether non-binary folks are included in such groups, which puts me in the awkward position of asking all the groups I’m currently involved in if this is still a space for me.” ↩︎

  2. Novamente, essa tradução (um pouco mais livre do que a anterior) é de minha autoria. Trecho original em inglês: “Labels are tremendously important to the queer community in particular. We’re sensitive to them. We use them to filter out things that might actually be dangerous to us. It’s your responsibility, as community organizers, to put serious effort into the structure of your community, the words you use, the rules you place on it, and the resources you provide. And besides reading medium thinkpieces like these, which might help a little, there’s no replacement for simply taking people who are not like you, who exist on these intersections, and bringing them into leadership.” ↩︎